domingo, 23 de fevereiro de 2014

O ROCK PORTUGUÊS: A MELHOR LÍNGUA PARA FAZER CIÊNCIA




10. O Rock PORTUGUÊS.

(a melhor língua para fazer ciência).

Em uma passagem das Memórias de Giacomo Casanova, o famoso aventureiro relata uma conversa com um erudito que lhe contou que existe uma tradução da Bíblia em dialeto napolitano, e uma da Odisséia de Homero, e que ambas "fazem rir". Tal é a natureza do dialeto napolitano, continuou ele, que não é possível falar de assunto nenhum, por mais grave que seja, sem provocar o riso. Se isso for verdade, é sem dúvida uma limitação curiosa e bastante incômoda para aqueles (numerosos no tempo de Casanova) incapazes de falar qualquer outra língua. Mas será que tais coisas acontecem mesmo? Haverá línguas especialmente apropriadas a produzir certos efeitos, ou mais adaptadas à transmissão de certos conteúdos do que outras?

O caso mencionado por Casanova, evidentemente, é extremo. Mas, em formas mais brandas, idéias semelhantes são defendidas por muita gente, mesmo hoje. Lembro-me de ter lido em algum lugar que um cantor se queixava de que o português era uma língua pouco própria para o rock. Poderíamos acrescentar a essa observação a estranheza que certamente provocaria um samba em alemão, uma modinha em japonês etc. Parece, pois, que há fatos que, até certo ponto, sustentam essas afirmações. Mas a questão importante para nós é se a interpretação desses fatos é correta. Ou seja: os fatos observados são conseqüência de qualidades e defeitos das diversas línguas ou, antes, produto de preconceitos e hábitos excessivamente enraizados?

A questão se estende a áreas tradicionalmente consideradas mais "objetivas": uma comissão encarregada de planejar uma revista científica defendeu a adoção do inglês como língua da publicação, porque este seria "mais preciso e adequado" do que o português à expressão de conceitos científicos. Acredito que, por trás dessas convicções, existe um complexo de fatos, hábitos e simples preconceitos que seria útil destrinchar. No que se segue, procuro colocar a questão em termos mais claros.

Argumentarei que as línguas são, de certo ponto de vista, totalmente equivalentes quanto ao que podem expressar, e que o fazem com igual facilidade (embora lançando mão de recursos bem diferentes). Mas dois fatores dificultam a aplicação de algumas línguas a certos assuntos: um, objetivo, a deficiência de vocabulário; outro, subjetivo, a existência de preconceitos. Como se vê, as idéias anteriormente relatadas não são totalmente desprovidas de base. Por outro lado, as presumíveis deficiências são sempre sanáveis, desde que haja motivação para fazê-lo.

Em primeiro lugar, é preciso distinguir claramente os "méritos" de uma língua dos méritos (culturais, científicos ou literários) daquilo que ela serve para expressar. Por exemplo, se a literatura francesa é particularmente importante, isso não quer dizer que a língua francesa seja superior às outras para a expressão literária. O desenvolvimento de uma literatura é decorrência de fatores históricos independentes da estrutura da língua; a qualidade da literatura francesa diz algo dos méritos da cultura dos povos de língua francesa, não de uma imaginária vantagem literária de se utilizar o francês como veículo de expressão. Victor Hugo poderia ter sido tão importante quanto foi mesmo se falasse outra língua - desde que pertencesse a uma cultura equivalente, em grau de adiantamento, riqueza de tradição intelectual etc., à cultura francesa de seu tempo. Igualmente, sabemos que a maior fonte de trabalhos científicos da nossa época são as instituições e os pesquisadores americanos; isso fez do inglês a língua científica internacional. Mas, se os fatores históricos que produziram a supremacia científica americana se tivessem verificado, digamos, na Holanda, o holandês nos estaria servindo exatamente tão bem quanto o inglês o faz agora. Não há no inglês traços estruturais intrínsecos que o façam superior ao holandês como língua adequada à expressão de conceitos científicos.

Um fato que vem corroborar essa afirmação é o seguinte: não se conhece caso em que o desenvolvimento da superioridade literária ou científica de um povo possa ser claramente atribuído à qualidade da língua desse povo. Ao contrário, as grandes literaturas e os grandes movimentos científicos surgem nas grandes nações (as mais ricas, as mais livres de restrições ao pensamento e também, ai de nós!, as mais poderosas política e militarmente). O desenvolvimento dos diversos aspectos materiais e culturais de uma nação se dá mais ou menos harmoniosamente; a ciência e a arte são também produtos da riqueza e da estabilidade de uma sociedade.

Mas isso não impede que surjam associações entre as línguas e as situações em que são encontradas com maior freqüência. Assim, à força de ler a grande literatura em francês ou em italiano e de ouvir, digamos, o napolitano quase que só utilizado para as necessidades da vida diária, acabamos achando estranha, ridícula mesmo, a leitura de uma obra literária em napolitano. A força de ouvir o rock cantado em inglês, um rock em português nos choca. E à força de ler (e escrever) artigos de genética em inglês, temos dificuldade em escrever (e mesmo ler!) artigos de genética em português. Essas associações criam problemas que são bastante reais, não se pode negar. O que se deve negar é que os problemas sejam causados pela estrutura das línguas em questão. É tão possível escrever poesia em napolitano quanto artigos científicos (e mesmo rock) em português; só hábitos inveterados se opõem a isso. É verdade que hábitos são forças poderosas, e portanto a dificuldade a que aludiu o cantor não é nada ilusória. Apenas sua interpretação das causas dessa dificuldade é incorreta. (É bom notar, aliás, que existe uma grande literatura científica em português; ou seja, ainda não chegamos ao ponto em que a nossa língua possa ser considerada inútil para fins de comunicação entre os pesquisadores.)
Vimos como os preconceitos tendem a produzir uma "especialização" das línguas: algumas seriam sentidas como melhores para a poesia, outras para a ciência e ainda outras, coitadas! Apenas para os contatos materiais do dia-a-dia. Esses preconceitos são de todas as épocas: Lucrécio, autor romano do século 1 a.C.,já reclamava da inadequação do latim, perante o grego, para tratar de filosofia. O imperador Carlos 17 no século XVI, era de opinião de que se devia falar espanhol nas preces, italiano com a amada, francês com os amigos, alemão com os soldados, húngaro com os cavalos e russo com o diabo (Carlos era falante nativo de flamengo; e quando lhe perguntaram com quem se deveria usar essa língua, deu uma resposta evasiva).

Assim, os preconceitos contribuem para que nem todas as línguas sejam aplicadas a qualquer uso possível. Mas será que não há algo mais por trás dessa especialização? Mesmo vencendo os eventuais preconceitos, sabemos que não deve ser nada fácil traduzir um manual de matemática em xavante. Não será um problema ligado à própria língua? Para responder, vamos primeiro distinguir duas grandes áreas naquilo a que chamamos "língua": a gramática e o vocabulário (ou léxico). A gramática é um conjunto de regras que determinam como se podem exprimir as idéias em uma língua: são regras de pronúncia (e de ortografia), de formação de palavras, de estruturação de frases e de atribuição de significado a essas estruturas. A gramática é aquela parte da língua que todos os falantes dominam de maneira muito uniforme; assim, não é comum encontrar construções sintáticas, nem sons da língua, que sejam conhecidos apenas de alguns falantes.

Já o léxico é uma longa lista de palavras, que complementa a gramática na tarefa comum de elaborar as frases da língua. Essa lista se encontra, mais ou menos completa, nos dicionários. Evidentemente, a lista não é a mesma na cabeça de todos os falantes; ao contrário do que sucede com a gramática, cada um de nós possui um vocabulário mental diferente. Ou seja, não sabemos todos exatamente a mesma lista de palavras: é muito fácil encontrar uma palavra que somente algumas pessoas conhecem. Além disso, passamos a vida aprendendo e esquecendo palavras, ao passo que nosso conhecimento da gramática é fixo.

Para que se possa exprimir alguma coisa em determinada língua, é preciso não apenas que a gramática dessa língua tenha as estruturas necessárias, mas ainda que tenha as palavras necessárias. E o que se observa é que todas as línguas têm as estruturas necessárias à expressão de qualquer idéia, mas nem sempre as palavras necessárias existem no léxico. Aqui, naturalmente, se trata de termos técnicos, pois qualquer língua tem palavras para pai, mãe, correr e comer. A dificuldade de traduzir o livro de matemática em xavante está, pois, no fato de que não há palavras para traduzir pentágono, equação, divisibilidade etc. Acontece que o povo xavante, dentro de sua cultura, nunca teve necessidade de exprimir essas noções; e, correspondentemente, nunca criou as palavras adequadas a elas.

O meu deficiente conhecimento do xavante me impede de dar exemplos, mas acredito que o oposto também seja verdadeiro: deve haver palavras em xavante que não têm correspondente satisfatório em português. Tudo depende dos interesses dos falantes e de suas necessidades comunicativas. Um povo que vive na selva terá um rico vocabulário para descrever aspectos do seu ambiente dos quais nós não temos nem notícia; de tal modo que pode haver textos xavantes que dificilmente encontrarão tradução conveniente em português. Se sentirmos que, ainda assim, o português é superior ao xavante, é porque o nosso modo de vida é que está sendo imposto ao povo xavante, e não o contrário. Isso dito, não há dúvida de que o maior perigo que correm as línguas, hoje em dia, é o de não desenvolverem vocabulário técnico e científico suficiente para acompanhar a corrida tecnológica. Se a defasagem chegar a ser muito grande, os próprios falantes acabarão optando por utilizar uma língua estrangeira ao tratarem de assuntos científicos e técnicos.

Por outro lado, as línguas têm, em princípio, recursos para enriquecer seu vocabulário rapidamente. Cada língua tem uma forma diferente de fazer isso. Por exemplo, algumas línguas, como o inglês, são muito tolerantes quanto à entrada de palavras estrangeiras (empréstimos), de modo que completam as lacunas simplesmente utilizando os termos originais. Outras línguas, como o alemão, dão preferência a formações vernáculas, como Fernsehen (defern, "longe", e sehen, "ver") para "televisão". Ainda outras recorrem a formações eruditas: as línguas românicas, entre elas o português, traduzem os termos estrangeiros, muitas vezes, através de formações greco-latinas, como quando se traduz o termo lingüístico alemão Umlaut por meta fonia (em inglês fica umlaut mesmo). O português também se tem mostrado receptivo a empréstimos, em certas áreas como a computação. O empréstimo, evidentemente, é a solução mais fácil e cômoda; mas, levada a extremos, tem a desvantagem de desfigurar o texto com um excesso de termos de aspecto estrangeiro: software, holding, off-road, station wagon etc.

Confesso que acho antiestética a acumulação de empréstimos que se verifica atualmente nos textos de economia, administração e informática (sem falar de certos textos de lingüística, onde a culpa é maior). Mas é preciso reconhecer que talvez seja esse o menor dos males. O maior perigo está em não acompanhar de maneira alguma, o desenvolvimento internacional do léxico. Isso é que acaba reduzindo uma língua às dimensões do napolitano ou do xavante: um dialeto de interesse local, inadequado às necessidades gerais da vida moderna.

É do ponto de vista do vocabulário, portanto, que faz sentido comparar as línguas, distinguindo as mais adequadas das menos adequadas à expressão de certas áreas do conhecimento. Aliás, levando em conta as limitações do nosso desenvolvimento, a língua portuguesa tem se saído bastante bem na tentativa de seguir o passo da ciência e da tecnologia modernas. Apesar de surgirem ocasionalmente algumas dúvidas (como no caso citado da revista científica), o português é a única língua de cultura do Brasil. Não se pode dizer isso de outros países, como a Holanda, a Suécia e o Japão, por exemplo, onde as publicações científicas se fazem, em grande parte, em inglês.

Em 1794, a Academia de Berlim ofereceu um prêmio ao melhor trabalho que tratasse de comparação das diversas línguas da Europa, para verificar qual seria a mais perfeita. O prêmio foi conquistado pouco depois, por D. Jenisch. E um crítico posterior comentou, azedamente, que era difícil decidir quem era o maior idiota: o que propôs a questão ou o que tentou respondê-la. Nós não precisamos ser tão radicais; colocada em termos do desenvolvimento do vocabulário especializado e dos objetivos da expressão, a questão da comparação das línguas faz sentido. E, o que é mais, chama nossa atenção para um aspecto importante da vida de nossa língua, uma das condições de sua sobrevivência como idioma de cultura no mundo atual.


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